co(lo)ração
- Fernanda Pougy
- 25 de out. de 2015
- 2 min de leitura
A enfermeira nunca consegue achar a via. Troca de braço, carregando o suporte e pedindo que eu bombeie com a mão - “abre e fecha”. A veia escapa. Pensa nisso. A veia some. Não quer dar.
As doze horas de jejum, que já provocam semi-desmaios desde o despertar, se tornam mais nocivas com esse processo ansioso à procura da veia. Para quê examinar meu sangue em um estado que ele nunca se encontra? Sem cafeína, sem sal, sem açúcares. Setenta e duas horas sem álcool. Morto.
Ela consegue localizar, pede que eu não me mova. “Seu plano não tem convênio para examinar a B6, vai fazer o particular?”. “Não”. Penso: que se foda a B6. Já tem oito tubos alí e uma lista de outras letras e números. Se tenho alguma fé, esta é a de que B6 não será a causa da minha morte. Começa a drenar.
Modernizaram o esqueminha. Agora sai um canudinho da agulha, que se liga a um receptor onde os tubinhos de coleta se encaixam, sem que a agulha sofra nenhuma pressão. Inteligente. Gosto de assistir.
Costumava olhar para o outro lado ou fechar os olhos, mas depois que assisti uma vez, fiquei encantada e, desde então, sempre encaro meu próprio sangue jorrando para dentro dos tubos de ensaio. Mó barato. Muito sangue de barata?
Começa a sair bem devagar, preenchendo o canudinho em câmera lenta. Ela enfatiza que eu devia abrir e fechar a mão. A essa altura, realmente, já não lembrava mais desse pedido. Vinho. Ora, eu sempre poderia jurar que dessa vez sairia verde. Verde musgo. Não pega sol, é molhado. Como não fica verde musgo? Mas corre tanto que nunca poderia ser verde. Talvez laranja, de sangue aguado. Bebo muito líquido. Ou então dourado. Virtualmente meu sangue com certeza é dourado. Objetivamente é vinho. Denso, escuro. Quando o pote enche, parece preto. Também parece comigo.
Chamam os nobres de sangue azul. No livro de fisiologia, dizem que o sangue ordinário é vermelho. O meu é vinho. Talvez um sangue cheio de DST’s pudesse ser transparente, com purpurinas furta-cor.
As veias são sempre azuis. E a minha é difícil de pegar.
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