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saibamos pelo que lutar

  • Fabian Cantieri
  • 26 de abr. de 2016
  • 7 min de leitura

"A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.

A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício."

Esse era um trecho do discurso de Jango em seu último comício antes do Golpe. Há meio século atrás. Um abismo de semelhanças.

"Abismo" porque sabemos não viver mais em uma ditadura - e aqui é importante ser preciso com as palavras - regime que impõe um autoritarismo forçoso, onde boa parte das esferas da vida estão subordinadas às exigências políticas e é visível um evidente descaso pelos direitos civis - hoje, ao enxergar descasos remanescentes, impomos a culpa numa escolha equivocada de governo, mas uma escolha que veio antes, prioritariamente, de nós, da maioria.

Por outro lado são as "semelhanças" desse abismo que assustam num discurso de 50 anos atrás: o PT trouxe essa esperança pró-povo, pró-sindicato, pró-reforma e o que vimos, apesar das evidentes e fundamentais transformações sociais é que a estrutura não se muda junto à legenda do partido no poder (e os exemplos são muitos desde a ideia desenvolvimentista de progresso, o pensamento estanque em relação à mídia até a própria economia neoliberal que fundamentalmente ainda está lá, em pleno vapor de crise).

"Abismo de semelhanças"... a expressão paradoxal não é a toa: o que a Lava-Jato trouxe a tona, em primeiro lugar, é o que sabíamos (leia-se, suspeitávamos com toda a certeza) sobre as transformações políticas de nosso tempo: para a elite oligárquica, mais interessante do que proclamar seu domínio político rebelando-se e assumindo a esfera pública, era tecer teias políticas que engendrassem de forma subreptícia a interseção de dois mundos. Nada mais antipovo do que conglomerados empresariais influenciando e/ou regendo ações governamentais. Isso tá lá atrás no incentivo assumido de boa parte da imprensa à ditadura, mas também hoje na lógica de funcionamento da máquina pública, onde o dinheiro abre quase qualquer porta do poder - modelo que se mantém vigoroso no Brasil, pelo menos, desde a era JK. Nesse sentido, até agora, nada poderia ser mais simbólico diante de um potencial de mudança, do que a prisão de Marcelo Odebrecht e a lista de codinomes de sua empreiteira. A consequência taí hoje por todos os lados, levam-se os empresários, caem os políticos. Um a um. Os Panama Papers chegaram pra enfatizar que não estamos sós: a tendência, além de histórica é global.

As últimas semanas tem mostrado que, contra queda, há resistência por parte dos políticos usando manobras de desvio de atenção (impeachment). Estes não são gatos pingados, margem de um congresso, mas sua constituição fundamental. Isto acontece não só pela estrutura política e pela regência republicana, mas também por conta da lógica oligárquica de intervenção no espaço público. Manda quem pode e quem pode não são só os eleitos, mas quem tem dinheiro e quer.

Visto que o rearranjo das peças não evidencia em uma transformação real no tabuleiro, é fácil chegar a conclusão: "reforma política". Até aí, nada de novo: volta e meia, volta-se a esse grito facilmente abafável.

Mas, pragmaticamente, ater-se às expectativas de uma reforma é acreditar que com algumas regras a mais no jogo, os jogadores - estes bons selvagens que alegremente abdicam de sua selvageria - enfim, jogarão conforme as regras. Não se enganem: para estes jogadores velhos de guerra, a lei é tal qual um joão para garrincha.

Quando vejo as hashtags #pelademocracia fico me perguntando a qual democracia, de fato, estamos reivindicando. Atenas, que gostamos de chamar de berço da civilização ocidental, não viu nascer a democracia, ela construiu uma democracia. Uma democracia que certamente não é cabível aqui pela proporção de nossas cidades e que não gostaríamos de viver por seu teor segregador à mulheres e negros.

(Graeber gostava de dizer: "Democracia não foi inventada na Grécia antiga. Por certo, a palavra “democracia” foi inventada lá – mas largamente por pessoas que não gostavam muito da própria coisa. Democracia, na verdade, nunca foi “inventada” de fato. Nem emerge de nenhuma tradição intelectual particular. Nem ao menos é uma forma de governo. Na sua essência é somente a crença de que humanos são fundamentalmente iguais e devem ser permitidos a conduzir seus assuntos coletivos de uma forma igualitária, usando quaisquer meios que lhes forem úteis. Nesse sentido, democracia é tão velha quanto a história, quanto a própria inteligência humana. Ninguém pode possuí-la. Suponho que alguém, se estivesse inclinado, poderia argumentar que emergiu no momento que hominídeos pararam de simplesmente tentar intimidar uns aos outros e desenvolveram as habilidade de comunicação para solucionar coletivamente problemas comuns").

Qual é essa uma democracia que queremos construir?

Essa uma democracia é a que está em pauta hoje na boca de muitos, na luta contra o golpe? Pela defesa aos nossos primeiros pactos pós-ditadura, materializados pela Constituição de 88? Sim, é também. O tal golpe (que só é golpe se exercido enquanto não houver provas contra Dilma pois, pedalada fiscal, todos sabemos, é retórica política) seria um abalo a ideia institucional de uma democracia ainda em suas fraldas.

Essa uma democracia somos nós, hominídeos do século XXI, tentando solucionar coletivamente problemas comuns? Me parece que não: não só pelo racha e polarização, mas muito além disso. Essa democracia vigente somos nós, delegando essa autoridade de resolução de problemas a outros para que possamos "viver nossas vidas" distante da política. Vamos pra rua agora para que estes representantes permaneçam em seus cargos, balizados pela ideia de que nossa instituição é ainda um castelo de cartas em incipiente construção, mas não estamos verdadeiramente querendo que esta instituição mantenha-se firme agora para que, num futuro breve, possamos voltar aos nossos encastelamentos pessoais?

Encastelamento pessoal não é cinismo retórico para uma obrigação ao envolvimento político. Podemos, claro, estar afastados da política, o engano tremendo é achar que para se ausentar dela é preciso criar um mecanismo de representação - alguém lá pensando no seu lugar.

Política não é profissão.

A Revolução Francesa foi um marco na história por não mais crer que um só homem - o rei - pode saber ou deve poder administrar as paixões de um povo. Quem é dono das paixões - o povo - é que deveria julgar e comandar, eles mesmos, suas vontades e ações. Mas, ora, até hoje, quem governa não é o povo, mas, quando muito, uma elite saída do povo. Mesmo Lula - esse símbolo do homem-povo - ao entrar no poder, se distancia do povo para virar, por princípio, diferente, representante de uma classe. Em "A cidade é uma só, filme de Adirley Queirós, uma sequência impressionante esclarece com nitidez: povo é Dildu, o candidato a deputado que empurra o carro, que está ali no chão, sofrendo os mesmos problemas, a mesma realidade e no mesmo chão dos outros, bem distante de Dilma e o PT - inalcançáveis - lá nas alturas de uma carreata que o ultrapassa.

Essa uma democracia deveria ser prioritariamente a reinvenção da política: é preciso esquecer a reforma para assumir aquela palavra tão malfadada e temida: revolução. O tamanho da crise deveria ser proporcional ao tamanho das mudanças: tempos de agitação política são tempos de renovação do olhar e muitas vezes o que parece radical aos olhos mundanos do senso comum é somente um sopro de vida nova chegando. O PT, aquela grande estrela da esperança, naufragou. O naufrágio independe da idoneidade de Lula e Dilma - há todo um partido podre. Há também todo um PMDB e PSDB corrompido. Dada as circunstâncias alguém acreditaria ainda em um PSOL ou qualquer outra nova dissidência de esquerda incorruptível? Ou, para além da corrupção, alguém ainda mantém inabalável fé no Syriza, depois de ceder às pressões da UE, aceitando medidas de austeridade?

"Que se vayan todos!"

Em 2001, ecos de um anti-capitalismo aparentemente ingênuo brotavam nas ruas da Argentina. A deslegitimação não era contra um ou outro grupo político, mas contra o corpo político como um todo corrupto e distante da vida da população. Diferente dos que gritam hoje contra a corrupção, com os hermanos não havia corrupção seletiva, mas endêmica - problema estrutural, não pessoal. Criaram, pois, assembleias a partir do princípio de horizontalidade para debater saídas que não contassem com ações governamentais. O impacto em pouco tempo foi enorme: Kirchner ao ser empossado na presidência, depois da saída sucessiva de três presidentes em duas semanas, e diante da paisagem tenebrosa de aparente suspensão da legitimidade do parlamento e do executivo, assumiu a inadimplência da monumental dívida bilionária argentina. A ação estabilizou o país, quase afundou o FMI e, principalmente, ampliou o olhar sobre a dívida dos países de terceiro mundo, pondo em cheque a relação distorcida entre tais agências internacionais (FMI, Banco Mundial) e os endividados.

Isso é só um exemplo de pessoas que começaram a enxergar política de uma outra forma, de entender que democracia, do jeito que conhecemos e vivemos é apenas uma e provavelmente não a mais apropriada, pois não a efetivamente do povo.

Hoje na França, nação que inventou nosso sistema político moderno, vemos uma democracia ser repensada na “praça da República”. Se, por um lado, raramente questionamos essa terrível herança francesa que é o sistema partidário, a nuit debout é a prova viva de que um outro modelo político não só é possível, como também desejado por muitos.

Hoje, uma das mais interessantes experiências políticas contemporâneas acontece nos três cantões de Rojava, na Síria, distante dos olhos eurocêntricos. Embrião da primavera árabe, lá se faz política com fins, sem atropelar os meios.

Hoje, uma outra forma de política vem sendo praticada em escolas ocupadas no Rio de Janeiro. Desenvolvem um espaço de igualdade a partir de suas diferenças. Um espaço de redescoberta da escuta, a dimensão mais profunda e o modo mais simples de falar.

Hoje, há levante de muro para que se manifeste cada um em seu quadrado. Cada um em seu partido de opiniões comuns.

A falta de tato e verbo com o outro sem o mesmo denominador comum é a prova de que deixamos de enxergar o outro como... outro, este é apenas mais um, facilmente categorizável, uma imagem (miragem?), carente de individualidade própria.

E ainda assim, os que pregam tamanha revolução são taxados por um romantismo utópico. Utopia, me parece, é acreditar que alguém seja passível de representação.

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