Carta ao amigo perseguido - e aos demais.
- Tamires Alves
- 17 de mai. de 2016
- 4 min de leitura
“Olha nosso povo aí Conjugando no presente o verbo resistir Nossos corpos densos respondendo à opressão Nossos nervos tensos suportando a humilhação
(...)
O nosso nome é resistência Olha o nosso povo aí ...”
Nei Lopes.
Nesses dias pós golpe te vi, meu grande amigo, - que admiro muito por sua trajetória como pessoa, professor e ativista político - replicar uma fala de que se envergonhava da nossa geração. Proferia que a anterior lutou contra a ditadura e a mais nova ocupa escolas enquanto a nossa faz apenas “vomitaços” em páginas do facebook e folia mascarada de batalha. Por um momento tal melancolia me alcançou e passei o dia digerindo para escrever estas palavras para ti, e, para nós.
Querido, eu sei que o tempo é duro e que nós ainda não nos recuperamos desse caixote – nenhum outro termo me parece fazer tanto sentido quanto essa sensação sufocante que aparenta durar uma eternidade -. Desorientados nadamos sem fôlego para algum lado sem sequer sabermos se estamos indo mais para o fundo ou chegando mais perto da superfície e do ar. Acontece que todas essas gerações estão vinculadas e tem caráter complementar. E eu não sei se esse pensamento vem da criação otimista que tive daquela figura forte feminina que você bem conhece, mas, acredite, não somos (apenas) manifestantes online.
Você se lembra de 2013? As manifestações começaram através das pautas do Movimento Passe Livre (MPL) e aos poucos a esquerda tomou as ruas. No início pleiteávamos o preço das passagens e a auditoria das empresas de ônibus, com o desenrolar dos dias esse coro foi ganhando novas pautas como a legalização das drogas e do aborto, maiores investimentos na educação, e requeríamos também que os cuidados despendidos a FIFA fossem tidos na saúde pública. Naquele tempo os golpistas não estavam ao nosso lado, ridicularizavam-nos proferindo que estávamos na rua e sequer usávamos o transporte público, “revoltosos de classe média que não valem nem vinte centavos” - parvoíce dita por Jabor. Eles ainda tentaram dividir os manifestantes entre “cidadãos de bem” e “vândalos” onde esta última caracterização se fazia aos que viam como forma legítima de protesto respostas rigorosas ao que sofriam dentro das suas comunidades ocupadas pelo exército.
Acontece que um dia os conservadores enxergaram nos protestos uma brecha para passarem medidas que lhes eram caras (contra a PEC 37 na época e a favor do impeachment nos tempos atuais) e, para obterem sucesso, inflaram a massa de manobra a fagocitar o movimento originário de esquerda com pautas orientadas pelos meios de comunicação de massa. Do lado de cá, espantados com a população que abraçava a polícia, saímos das ruas, esvaziamos as manifestações na Presidente Vargas e expusemos a mídia independente e a internacional a selvageria com que as nossas instituições tratam os povos originários, os negros e os que questionam a ordem vigente. O montante de dinheiro público gasto e as leis postas em vigor para sediar os megaeventos foram noticiadas lá fora, enquanto no plano interno a revista semanal conservadora proferia a sandice de que uma jovem de 27 anos com apelido de personagem infantil era articuladora de um movimento inventado para criar desordem.
Fora do nosso país o mesmo aconteceu, movimentos que pediam por direitos acabaram sufocados por lideranças repressivas. A praça Tahir fervilhava e a primavera árabe toda ganhava força enquanto nós, do lado de cá entoávamos: “Isso aqui vai virar a Turquia” numa singela homenagem aos companheiros distantes. De 2013 para os dias atuais vimos o poder do Estado segregador e racista manter preso um único manifestante, Rafael Braga, negro e pobre, símbolo do nosso seletivo sistema punitivo. Existem ainda os sujeitos perseguidos pelo Estado que desde 2014 respondem processos e não podem deixar a comarca. Não podemos esquecer de alertar que as práticas repressivas começaram ainda no governo PT e se perpetuarão a passos largos agora no projeto do governo golpista.
Gostaria de te acalantar dizendo, como na querida música do Chico, que isso “vai passar”, todavia hoje é um dos primeiros dias desse vale que estamos imergindo. Vai passar mas vai demorar, e, até lá, teremos humildade de aprender com essa juventude que ocupa as escolas, e, acredite, isso não é endógeno. Nossa geração de educadores motiva seus alunos para questionarem, refletirem e não aceitarem as imposições. Os professores são uma fatia da população que em qualquer época nunca deixaram de lutar pela melhoria na educação, com sucessivas greves, mesmo sofrendo cortes e ameaças de exoneração. Somos da geração que começou a ingressar na universidade por cotas, tão essenciais num país com o tamanho da nossa desigualdade social. Engatinhamos em relação aos direitos dos mais humildes, dos povos originários, LGBT, entre muitos outros, e, tudo indica que com a bancada do boi, bala e bíblia a frente do país, novos embates ainda mais duros terão de ser enfrentados.
Lembre-se também que a vida não tem esse caráter evolutivo e linear, somos, nós e o tempo, repletos de rupturas e inconstâncias, eu sei que você sabe disso. As gerações e nações vizinhas, aparentemente mais brilhantes que a nossa, também tem seus Kataguri, Sherazade, Trump e Ustra. Veja o exemplo da Suécia, tida no Brasil como berço da igualdade e coerência, teve esses dias uma manifestação fascista “white power” e uma mulher negra não titubeou em enfrenta-los. Dentro e fora do nosso país e da política existem os reacionários, mas também existem muitos fóruns progressistas. Guardemos as Malalas e os Marighellas, nossos jovens ocupantes das escolas públicas, os seus professores, trabalhadores rurais e urbanos explorados, todos costumeiros em enfrentar a truculência policial orquestrada pelo Estado. E mirando nestes exemplos, vivamos com o ânimo daqueles que não titubearam ou olharam por outra direção. Não vamos nos entregar ao fracasso, é preciso que vinculemos a sabedoria dos que já se opuseram a forças tão reacionárias, com a nossa disposição de aprender, afrontar e transformar todos os nossos debates dentro dos movimentos sociais, escolas, associações e academia em luta. Eles hão de pisar nos nossos votos, por ora, mas emergiremos sincronizados em resistência, ligeiro como a melodia, pois “quem não pode com formiga não assanha formigueiro”. O que a oligarquia que há 500 anos está usurpando o nosso país não se dá conta é que existirá sempre a nossa resistência e nós não cansaremos e saberemos lutar. Como diz o jargão atual: luto para nós é verbo. Sigamos.
Um beijo muito grande, T.
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