exceto-quando
- Maria Isabel Iorio
- 31 de mai. de 2016
- 3 min de leitura
Comigo nunca aconteceu nada. Exceto essa noite, quando sonhei que tava sendo estuprada e acordei às 5h da manhã, suando, como se fosse verdade. Exceto quando tava num bar e um amigo veio se desculpar, de total inesperado, por ter dito a um outro, ambos me olhando, que queria me pegar pra dar uns tapas. Exceto quando soube em segredo que outro amigo, um dia, bêbado, estuprou uma menina desacordada no fim de uma festa. Exceto quando soube que outro amigo, aliás muito amigo desse anterior, abusou de uma amiga num churrasco, enquanto ela dormia alcoolizada. Exceto quando tive q responder a um garoto recém conhecido, numa festa, que eu tinha namorada e que não, eu não sentia falta de um pau. Exceto quando em todo encontro de família eu tinha que responder que não sei onde estavam os namoradinhos, e agora, que namoro uma mulher, magicamente a pergunta sumiu de pauta. Exceto quando um dia, voltando muito louca de uma festa, um garoto, amigo de amigos, ofereceu dividir taxi comigo e, no caminho, eu, cansada, e expressamente desinteressada dele, acabei cochilando, pra meses depois saber por um amigo, rindo, que ele me beijou na boca enquanto eu dormia. Exceto quando aconteceu algo muito pior enquanto eu dormia, e eu tive que ter muita força pra acreditar que foi verdade, e não sonho (que sonho meu é outra coisa), e ainda hoje não poder contar, por envolver e machucar pessoas que amo tanto. Exceto quando saio à rua. Exceto quando, ao contar pra um grande amigo que tinha escolhido estudar Letras, tive de ouvir que seria uma boa esposa. Exceto quando vejo uma mulher ser agredida por um homem, na rua, e não ter força suficiente para intervir. Exceto quando tenho meu voto, confiado à primeira presidente mulher do meu país, desconsiderado, num golpe machista. Exceto quando esse golpe instaura um governo sem nenhuma representação feminina. Exceto quando discuto política com amigos que defenderam o impeachment dela e tenho de ouvir suas explicações jurídicas num tom de “deixa eu te explicar”. Exceto quando soube que o meu antigo porteiro, ele, que durante tardes e tardes e noites me ensinava a jogar bola na portaria, e era meu amigo, ele, expiava mulheres do telhado do prédio, toda noite, escondido, e só agora pensar quão simbólico tinha sido aprender com ele a driblar, desviar de seu corpo. Exceto quando na escola tínhamos de costurar os furos em nossas calças jeans (isso porque não podíamos usar saia), para não incitar os meninos. Exceto quando nessa mesma escola um amigo se masturbou no meio da sala escura, enquanto passava um filme, e nos mostrou o gozo, rindo. Exceto quando nessa mesma escola um menino começou a passar o dedo na bunda das meninas, discretamente, e fomos reparando, constrangidas, uma a uma. Exceto quando cresci ouvindo do meu pai que homem não presta, que eu devia me cuidar, e agora, ironicamente, ter que duramente ensina-lo que a filha dele pode amar e viver com outra mulher. Exceto quando tenho de engolir pessoas se metendo na minha maneira de vestir ou pentear, comemorando quando estou mais magra ou mais perto do padrão. Exceto quando ouço que sou maluca. Ou que sou livre, e engasgo de pensar o quão trabalhoso é o esforço diário para se sentir um pouco assim – isso também só possível porque moro onde moro e vim de onde vim. Exceto quando escolhi ser escritora num país onde mulheres não são lidas ou publicadas, aliás, num país onde muitas mulheres ainda não sabem sequer escrever o próprio nome. Exceto quando escrevo em uma língua onde o gênero feminino é marcado, e o masculino é a forma não marcada – é a regra.
Exceto quando tudo isso não é exceção. Quando isso é meu e de toda mulher, todo dia. Isso quando a história não é muito pior.
Comigo nunca aconteceu nada até ir, na sexta-feira, dia 27 de maio de 2016, ao ato das mulheres contra o estupro. Em 2016. E ali, repetir, em jogral, a história de tantas mulheres que prestaram depoimento de abusos e estupros.
Agora percebo, quando abro o word pra escrever isso aqui, que ele intitula “Documento 1”. Isso é um documento. E espero q toda mulher escreva o seu. E diga em praça pública amanhã. No segundo ato contra o estupro. Em 2016. Pra eu repetir junto a milhares, em uníssono, em primeira pessoa. Gritando, assim, que a luta de cada mulher é minha. E nós vamos falar em voz alta até todo mundo ouvir.
Em respiração boca a boca. Nosso primeiros-socorros. A garganta aberta até termos o corpo inteiro indo até onde a gente quiser.
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