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uma a uma, existindo.

  • Fernanda Pougy
  • 31 de mai. de 2016
  • 3 min de leitura

Diria um tanto, mas não consegui dizer nada. Isso diz muita coisa.


Li isso como um convite da Maíra a dizer algo, pois concordo com ela: antes tarde do que nunca, precisamos usar nossas vozes.


Uso o exemplo mais recente, que ainda está aqui engasgado. Ele carrega todos e quaisquer outros pelos quais eu já passei, elas já passaram, nós passaremos ainda tantas vezes, infelizmente. Espero que eu passe por eles, a cada dia, conseguindo dizer um pouquinho mais.


O que vou contar é uma “banalidade cotidiana” que nada tem de banal, mas acaba sendo tratada assim, inclusive por mim, já que é vista com tanta naturalidade e acontece tão frequentemente.


Eu estava fazendo um exercício na academia e meu professor se aproximou fazendo qualquer gracinha. Eu estava segurando um aparelho, como sempre na minha postura habitual para momentos em que estou sozinha e em público: cara amarrada e fones de ouvido. Funciona bem, me poupa de ouvir um bocado de coisas, mas não tudo.


Veio ele, mexeu comigo e fez expressão de que queria dizer alguma coisa. Eu tirei um dos fones (leia-se: te dou um pouco da minha atenção, não toda, não por muito tempo, seja breve) e escutei que um “cara aí” tinha ido perguntar a ele qual era meu nome. O tal, muito observador, achou que meu corpo mudou e fez um elogio em termos de marombeiro. O recado estava sendo repassado, supostamente, para eu ficar feliz. Eu fiquei embasbacada, vermelha, gaguejei e só consegui responder que ele não deveria ter falado meu nome para ninguém.


Nessa hora, outra professora da academia que estava perto se aproximou fazendo a mesma cara de “olha, que sucesso” e brincou “arrasou, hein”. Como eu continuava quase implodindo de constrangimento, o primeiro professor foi embora e ela, que ficou, me disse para eu não ficar assim sem graça. “Pensa só, pode ser um gatinho”. A ela eu ainda consegui dizer qualquer coisa, embora muito muito menos do que eu gostaria de ter dito: “não importa se é ou não é um gatinho, não quero nem saber quem é, aqui não é o lugar e esse não é o jeito de abordar alguém”. Larguei tudo que estava fazendo e fui embora sem terminar.


Voltei para casa remoendo e estou desde ontem tendo replays, daqueles amargurantes, nos quais a gente fica imaginando respostas tão melhores que poderiam ter sido dadas. Eu ter passado o feriado muito abalada com a notícia do estupro coletivo no RJ, ter escrito sobre isso (o que quer dizer que, para tal, li MUITA coisa, estudando para poder montar os argumentos que escreveria), ter conversado tanto sobre essa cultura, estar tão à flor da pele e com o tema tão na ponta da língua, nada disso resolve a questão: quando você é objetificada, é difícil encontrar lugar de enunciação.


Queria gritar que ter um corpo não significa que ir a rua é se oferecer na vitrine como objeto a ser avaliado, criticado, elogiado, almejado ou rejeitado. Que isso só acontece, especificamente, porque é um corpo de mulher, mas não deveria acontecer. Percebem? Mesmo que entre marombeiros haja o estranho habito de ficar medindo o muque, comparando, comentando que o colega “cresceu, tá enorme”, o lugar em que se coloca essa avaliação é totalmente outro. E o que me foi dado como avaliação positiva e recebido como ofensa fica totalmente incompreendido. Meu protesto sobre ter minha identidade revelada a um estranho que está prestando atenção na mudança de consistência da minha bunda há meses é incompreendido. “Falei seu nome, qual é o problema?”. Beleza! Se soubesse meu endereço, ia dizer para ele também?


Enfim, esse é um exemplo de objetificação dentre os tantos outros que uma mulher que mora sozinha, frequenta uma academia, o transporte público, corre na rua e circula muito na madrugada enfrenta diversas vezes todos os dias. E o meu lugar é privilegiadíssimo. Tem gente passando por coisas inimaginavelmente mais invasivas e ofensivas a cada minuto.


A gente precisa MESMO falar disso


E estamos falando.

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