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Lúcia,

  • Maíra Motta
  • 30 de mar. de 2017
  • 2 min de leitura

All my friends are gone and my hair is gray

você ainda canta na sala vazia?

Ontem sonhei com você. Sem cabelo nenhum. Nua. Você bem perto, falando pelos olhos: nenhuma certeza é mais sagrada que a esperança das zonas inexploradas. Você tava careca. Tava bonita.

Pensei na graça da semelhança entre os estados de algumas palavras

e o teu vício pelo volume dos cabelos: na calvice, toda falta é entrada. Já pensou nisso?

Andando pela senhor dos passos, senti o cheiro da Brita. Brita e sua língua murcha, Brita e suas 19 vidas, Brita se afogando na piscina e a respiração boca a nariz.

Ninguém ressuscita por choque no coração, isso é mito, balela de quem sofre. A verdade é que é tudo uma questão de ar circulando. Uma vez dei um nó na guia, só pra ela não fugir no cio. Nó que não sufoca, guia.

- bem ao contrário dos que dão na garganta da gente em noites de frio.

Lúcia, ontem contei no relógio o resultado das coisas rejeitadas. Foram mais de trinta e dois post-its amarelos. Desenhei todas as faltas: os braços da Vênus de Milo, os espaços vazios entre nossos órgãos, a indivisibilidade do número zero e tudo o que o teu decote não mostra. Rabisquei as coisas do chão, essas de que não tratam os vitorianos. Fixei de relance no espelho meu pior ângulo. Brinquei com ele. É engraçado como a gente vira outro quando tá em movimento. É engraçado,

quando a gente vira adulto?

Rabisquei tudo, Lúcia, tudo. De tanto risco, a borracha já não apaga: pinta. De tanto repetir a palavra estratosférico, virei disléxico.

Tem ruelas que parecem dar sempre no mesmo rumo e é espantoso isso de se educar pro susto. Esse impulso de estar no escuro outra vez: endorfina, feel good químicas, essas emoções que não dão em minhoca, chame do que quiser.

Essa semana completei um sudoko em 9 segundos e descobri o truque de cantar duas músicas ao mesmo tempo: uma precisa estar no automático. Subi na balança da farmácia e pesei a importância de conferir o devido peso às coisas. Tô gordo, Lúcia.

Ando lendo muito parado. Li que João Cabral de Melo Neto vivia com certas abelhas domésticas e isso me pareceu um lirismo um tanto quanto perigoso. Coelhos selvagens, Vênus sem braço, são imagens que a gente não esquece. Pecam pela ambiguidade e ficam pelo pecado. É de fazer sonhar. Ficam pela esperança das zonas inexploradas, pelos 90% que a gente não domina,

pela metade de tudo que a gente esquece,

pelo inacabado da obra

que só interminada

-pelos furos, pelas curvas, pelas rachaduras do futuro-

periga e vive.

https://www.youtube.com/watch?v=da18kGGkYjw

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