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Bicho azul

  • Maíra Motta
  • 12 de jun. de 2017
  • 2 min de leitura

Ninguém pode ser tão azul assim. Eu disse já me desdizendo porque era claro que ele era. Testa pavão, nariz piscina, olhos petróleos. um bichinho todo azul que além de azul era gente. Um pingo azul de gente. Cruzei meus dedos até fazer das mãos um cérebro que repetia: fica. fica. fica. Como se convence alguém a viver?

"Vai ser rápido, eu juro! 70, 80 aninhos no máximo. Talvez um pouco mais, mas aí só se você quiser muito. Muito. Pensa bem, podia ser bem pior: imagina se você nasce o Grand Canyon ou o Everest ou mesmo uma rocha, dessas que levam três eras inteiras até deixarem de ser? Imagina se você viesse planeta, que chato!, toda uma eternidade girando lento em torno de uma bola de fogo?"

O bichinho tremeu, soltou um grunhido: resmungo ou respiro?

Eu claramente não estava sendo convincente.

Uma fila se formava atrás de mim, "Vê? Todo mundo quer que você fique!". Mas isso não é um bom argumento, e nem verdade. Atrás de mim, um homem com cara de porco comia em câmera lenta um Big Mac, a boca suja de mostarda, a blusa suja de mostarda, mostarda mostarda mostarda. Estava óbvio que o alface entre os dois dentes não sairia nunca mais dali. Nunca.

O bichinho tinha ótimas ponderações. Mas meus dedos ainda pensavam juntos. Continuei: "tente não se basear nisso pra tomar suas decisões: o mundo é maior do que essa arcada dentária.

Em algum lugar agora, um som quente muda a temperatura de alguém. Uma folha na serra segura a última gota da chuva da noite anterior, uma teia de aranha é rasgada, mas ainda dá certo pra ela.

e caso você não venha a ser lá muito fã da natureza, tudo bem!, estamos numa época mesmo incrível quanto à tecnologia. E eu não tô falando de biometria e tênis que piscam, não não. Você provavelmente vai ter um amigo robô ou um skate que voa, e isso vai ser normal.

Você vai crescer. Vai tentar evitar dores amorosas e gripes, mas não vai ser bem sucedido nisso. Você vai se apaixonar loucamente e achar que nunca mais vai sentir isso de novo, até sentir. Você vai tomar um porre e ficar bêbado que nem um gambá e jurar que nunca mais vai ficar que nem um gambá, até ficar. E você vai rir de um gif e levar um choque no cotovelo e prender a respiração debaixo d'água só pra testar seus limites. Você vai ter suas próprias dúvidas e arrependimentos e desejos. Você vai ter um segredo que vai ser só seu.

E aí você vai envelhecer enrugar esquecer e repetir o pouco que lembrar mil vezes com medo de esquecer isso também. E aí, exausto de viver, você vai morrer. Mas só aí. Agora não. Agora você fica."

O bichinho grunhiu. Ufa, é um respiro.

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